segunda-feira, abril 22, 2024

Homem-Aranha – Origens

 




O Homem-Aranha é um dos personagens mais populares da Marvel – senão o mais popular. Entretanto, poucas pessoas da nova geração conhecem as primeiras histórias do personagem. Conheço até mesmo gente que faz quadrinhos de super-heróis e nunca leu essas histórias. Uma falha de formação quadrinística que pode ser remediada com número 16 da coleção da Salvat dedicada ao herói.
O volume inclui a primeiração aparição do personagem, na revista Amazing Fantasy 15, uma revista que estava para ser cancelada e que Stan Lee aproveitou para testar um novo personagem que o dono da Marvel insistia que seria um fracasso. Afinal, as pessoas odeiam aranhas, não? Além disso, um herói magrelo, feio, paparicado pela tia? Uma receita de fracasso. No entanto, foi um sucesso tão grande que o personagem acabou ganhando revista própria já naquele ano de 1963.
O Homem-aranha se diferenciava por ser magrelo e feio. 


Embora a primeira capa tenha sido feita por Jack Kirby (aliás, a capa do volume da Salvat), quem ficou responsável pelo visual do personagem foi Steve Ditko. Os desenhos de Ditko apresentavam uma anatomia estranha, especialmente quando o personagem estava em ação. No entanto, o que seria defeito, virava qualidade: um herói aracnídeo deveria mesmo ficar em poses estranhas, não?
Embora essas histórias ainda puxem muito para o infantil, há um charme inequívoco nessas HQs. Parker sendo zoado pelos colegas, azarado em tudo, tia May tão ingênua que, quando é sequestrada pelo Octopus o acha um senhor muito respeitável e se assusta quando o aracnídeo chega para salvá-la. O aracnídeo em seu estado puro.
Além disso, vale destacar a incrível habilidade de Ditko de contar muita coisa em poucas páginas. Ditko era um narrador nato e lendo essas histórias é possível perceber o quanto Frank Miller deve a ele.
As splash pages eram emocionantes. 


E, claro, temos o texto de Stan Lee, com o bom humor que caracterizou o personagem. Aliás, o textos de aberturas das histórias são impagáveis sempre em splash pages emocionantes. Na abertura do número 5 da revista, Lee diz aos leitores que eles já devem ter visto várias histórias em que a introdução a qualifica como a mais espetacular aventura já escrita (na verdade, algo que o próprio Lee fazia em profusão) e que daquela vez ele seria totalmente honesto: “Esta pode não ser a maior história de todos os tempos! Talvez você possa conhecer outros vilões piores ou até mesmo tenha lido um roteiro mais emocionante... mas, sinceramente, nós duvidamos que isso seja possível!”.
A união da narrativa de Ditko com o texto divertido de Lee fez com qua o personagem se tornasse popular a ponto de ganhar uma edição anual, na qual ele enfrenta seis vilões apresentados no primeiro ano, o Sexteto Sinistro, uma aventura presente no volume, que Lee usa para promover outras revistas da Marvel, colocando os personagens das mesmas para fazerem pequenas participações na trama. É um bom termômetro do sucesso do aracnídeo já naquele primeiro ano.

1983 - Campeões do mundo de críquete

 

Até o ano de 1983 o time da Índia só havia ganhado uma única partida no campeonato mundial de críquete. Mas, naquele ano, indo contra todas as expectativas, a Índia não só ganhou partidas como se tornou campeã mundial com um time de desconhecidos.

 É a história desse milagre esportivo que o diretor Kabir Khan conta em 1983 – Os campeões do mundo de críquete, filme disponível na Netflix.

 O críquete é um esporte muito estranho, especialmente para nós brasileiros. É uma espécie de baseball no qual os jogadores usam calça e camisa social. Além disso, o placar não é a pontuação de um time versos a pontuação de outro time, o que, para quem não está acotumado, dificulta perceber quem está ganhando.

 Esses aspectos podem afastar muitos expectadores, mas quem persistir encontrará uma obra divertida e emocionante ao mesmo tempo.

 Acompanhamos o time comandado pelo esforçado capitão desde a saída da Índia, quando são escarnecidos pelos próprios indianos, a chegada na Inglaterra, onde são ridicularizados pelos ingleses, até as primerias vitórias. A direção e o roteiro transformam todas essas dificuldades em humor, dando leveza ao filme. Outras oportunidades de humor surgem a partir das diferenças culturais entre ingleses e indianos – em especial os vegetarianos.

 O filme tem outro mérito: ele mostra como o esporte pode ser um elemento de integração nacional e promoção da paz.

 Na época a Índia vivia um violento conflito interno entre indus e mulçumanos, no que estava se transformando praticamente numa guerra civil. Quando a seleção de críquete avança para a semi-final, os conflitos cessam.

 Uma sequência é representativa disso. Um velhinho e seus filhos sofrem para conseguir consertar a antena e ver o jogo, evitando uma patrulha de inimigos que passa na rua. No meio do jogo, os soldados batem na porta. O medo na expressão dos moradores é visível. Mas os soldados só querem saber qual era a pontuação da Índia. No final, todos estão ali, juntos, assistindo ao jogo.

 1983 é uma grata surpresa. 

Roteiro para quadrinhos: Como melhorar o seu texto

 


Uma pergunta comum de novos roteiristas é: como melhorar meu texto?
A resposta vale para qualquer um que escreve, seja quadrinhos, cinema, TV, livros: lendo e escrevendo.
Não existe outra forma de melhorar que não seja produzindo. Quanto mais produzir, melhor ficará seu texto. 
Isso é bem óbvio no caso de roteiristas de quadrinhos que trabalharam durante anos em um único título, começando em início de carreira.
Pegue, por exemplo, uma história de Chris Claremont na sua fase inicial dos X-men. Depois compare com uma história da fase em que os desenhos eram de John Byrne, época em que o texto de Claremont já estava desenvolvido. A diferença é gritante.
Outro exemplo é Gerry Conway, escritor que começou sua carreira no Homem-aranha e foi responsável por uma das fases mais antológicas do personagem, com histórias clássicas, como a morte de Gwen Stacy. No começo, o texto de Conway parece inseguro e claramente imita o de Stan Lee. Com o tempo o texto se torna solto e vemos, a cada edição, a melhora no roteiro.
Infelizmente no Brasil não temos um mercado consolidado de quadrinhos que permita ao roteirista evoluir escrevendo um título. Mas para isso vale a boa e velha editora Gaveta. Escrever para a editora Gaveta significa escrever para engavetar, sem nenhum objetivo imediato de publicação, escrever para treinar. Pode ser que um dia você vá lá na gaveta e reaproveite alguma daquelas ideias, mas o objetivo inicial é apenas esse – escrever.
O ideal de um bom escritor é ser como um bom motorista. Um bom motorista dirige automaticamente: ele muda a marcha, acelera, diminui marcha, freia, é tudo automático. Da mesma forma, um bom escritor. Depois de algum tempo e muito treino, o texto flui automaticamente e fica bom.
Revisando O UIVO DA GÓRGONA acabei me espantando com a quantidade de figuras de linguagem e de outros elementos narrativos que coloquei na trama. Foi tudo inconsciente. Não passei horas pensando: ah, vou colocar uma metáfora aqui, ah, vamos ter uma elipse aqui. Isso surge naturalmente. O ideal é que o escritor treine, treine, treine, até chegar a esse ponto.

Livro para baixar: 2021 reúne alguns do melhores autores de ficção científica do Brasil

 


A partir de sete ilustrações de Edgar Franco, sete contos de ficção científica de Edgar Smaniotto, Fábio Fernandes, Fabio Shiva, Gazy Andraus, Gian Danton, Nelson de Oliveira e Octavio Aragão. Os contos têm no máximo 2021 palavras, como referência ao ano de 2021, que para Edgar representa o tempo de um admirável ou abominável mundo novo, em que o velho "normal" segue incólume, em aceleração absoluta tornando-se HIPERNORMAL.

O livro está sendo disponibilizado gratuitamente. 

Para baixar o livro, clique aqui.  

O prazer do sexo

 


Atualmente, no mundo ocidental, temos uma visão muito específica da sexualidade. Inventamos categorias sexuais excludentes, como homossexual, heterossexual, bissexual e congêneres, tentamos enjaular toda a diversidade sexual nesses rótulos. Entretanto, embora essas palavras usem radicais gregos e latinos, elas não refletem a maneira como gregos e romanos viam o sexo. Para eles, por exemplo, um homem que se relacionava com outro homem não era homossexual pela simples razão de que o conceito não existia. É essa variedade de comportamentos (que podia incluir desde o incesto dinástico aos agrupamentos militares de amantes) que se debruça o livro O prazer do sexo, de Vicki León (Apicuri, 334 páginas).
Vicki León é especialista em pesquisas em documentos históricos, tendo escrito os livros Mulheres audaciosas da antiguidade, Mulheres audaciosas da Idade Média e Meu chefe é um senhor de escravos.
As fontes históricas originais consultadas pelo autor fazem a diferença do livro no meio de vários lançamentos sobre sexualidade que abarrotam as livrarias recentemente, muitos dos quais com pouco conteúdo. Para entender como gregos e romanos viam o sexo, o autor consultou documentos oficiais, como leis, cartas, narrativas teatrais e vários outros.
Uma das informações que certamente irão chocar o leitor é a relação entre sexo e religiosidade.  Num mundo dominado pela religião cristã, no qual a sexualidade é vista como pecado, pode ser espantoso descobrir que os antigos constantemente uniam as duas coisas.  No Egito antigo, por exemplo, o novo Faraó deveria semear o Egito. Ele fazia isso se masturbando e ejaculando no rio Nilo. O ritual garantiria a inundação anual do rio, providenciando a prosperidade da região.
A palavra orgia, por exemplo, tem origem em uma cerimonia em honra aos deuses (o mais famoso deles, Dionísio, deus grego do vinho, ou seu equivalente romano Baco – de onde vem a palavra bacanal). As orgias, ou bacanais, envolviam bebidas alcóolicas, danças frenéticas e segredos espirituais – afinal, era uma cerimônia religiosa, não?
Em quase toda a antiguidade, eram comuns prostíbulos sagrados. Havia centenas de escravas religiosas vinculadas a centenas de templos diferentes, chamadas de cortesãs sagradas.
Na Roma antiga, um dos rituais mais famosos eram os lupercais, ou lupercalis, em homenagem a Inuo, deus do sexo e realizado no dia 15 de fevereiro. Os mancebos começavam o dia reunindo-se nos arredores da cidade, onde sacrificavam um bode à divindade, tiravam a pele do bode, cortavam em tiras e faziam chicotes com elas.  Depois percorriam as ruas da cidade, seminus, o corpo reluzindo de óleo. As moças se aglomeravam para receber uma chibatada nas nádegas. Acreditava-se que isso afastava os espíritos maléficos, tornava a mulher mais receptiva ao marido, dava-lhe uma boa gravidez e um parto sem incidentes. Ou seja: o sonho de toda mulher romana.
Além disso, havia pênis na maioria dos templos. O deus Príapo, conhecido por sua enorme ereção, era famoso na península itálica e sua imagem aparecia em casas e muros. Objetos fálicos eram considerados uma espécie de talismã contra o mau-olhado e as forças malignas e por essa mesma razão era comum encontra-los na maioria das casas.  
Outro aspecto interessante é a análise do autor sobre a sexualidade, em especial grega e romana, que ele chama de polissexualidade. Para esses povos, deveria parecer absurdo definir esta ou aquela opção sexual como opções de vida ou práticas anti-naturais: “A questão era que não tinham de escolher isto ou aquilo. Podiam provar de tudo, ou quase tudo”.
Na verdade, a variedade sexual era vista como natural e muitas vezes parte do aprendizado. Na Grécia antiga, por exemplo, os casais masculinos eram invariavelmente cidadãos livres, sempre um homem adulto com um jovem de uma família não imediata. Essa relação era considerada pedagógica para o jovem e podia incluir aspectos sexuais e eróticos, nos quais o jovenzinho era sempre passivo. “Quando o adolescente atingia a plena idade adulta, o relacionamento acabava; mais tarde ele, por sua vez, tornava-se o mentor (erastés) de um erómenos, um jovem amado de doze a dezessete anos”.
Na verdade, se for necessária uma definição, esta será através da dicotomia ativo versus passivo. A grande questão na antiguidade clássica não era se a pessoa se relacionava com homens ou mulheres, mas quem penetrava e quem era penetrado. Havia aí, por exemplo, uma relação de poder. Um nobre poderia tranquilamente ter uma relação com seu escravo e isso não era visto com maus olhos pela sociedade (dependo da situação, poderia até mesmo ser elegante, como no caso dos delicatus, meninos bonitos e escravos sexuais usados para penetração anal por parte dos homens ricos). Mas o nobre deveria sempre manter na condição de ativo. Um escravo penetrando um nobre seria um verdadeiro escândalo.
O ato sexual passivo era visto como tão degradante que podia ser usado até mesmo como castigo. O adultero poderia, por exemplo, ser sodomizado pelo marido ofendido. Mais degradante que a penetração anal passiva, só o sexo oral. Os adeptos da felação e da cunilíngua que acabavam caindo na boca do povo nunca eram convidados para jantar. Dizia-se que sua conduta pervertida lhes dava um mau hálito terrível.
De aspecto negativo, o fato do livro em alguns momentos resvalar no que podemos chamar de fofoca histórica, aspecto destacado inclusive por alguns títulos, como “Otávia & Marco Antonio: o amor materno supera o resto”. O leitor, no entanto, pode simplesmente ignorar essas partes.

Turma da Mônica – Romeu e Julieta


Se há uma história em quadrinhos que marcou uma geração de leitores brasileiros é da versão do estúdio Maurício de Sousa para a peça de Shakespeare Romeu e Julieta. Ela foi publicada em 1978 em uma edição especial eu li provavelmente naquele ano.

Anos depois a história foi republicada pela editora Globo e, por alguma razão, deixei passar nas bancas, mas consegui em um sebo.

Há dois aspectos que chamam a atenção ainda hoje.

A desenhista da história demonstra um incrível domínio da narrativa. 


Um deles é a qualidade dos textos de autoria de Yara Maura Silva e Marcio Roberto Araujo de Sousa, muitos dos quais rimados, a exemplo desse, dito primeiro pela Magali (que aqui vira Ama Gali) e depois pela Julieta Monicapuleto: “Eu sei que proibido, mas não resisto, não! Eu sei que é perigoso, mas o fruto proibido é que é muito mais gostoso”.

Deu para perceber também que os trocadilhos nos nomes dos personagens são outra atração a parte. À certa altura, Julieta demosnstra preocupação com o seu Romeu Cê. “Quem é o Romeu Cê?”, indaga a Ama Gali. “É o Romeu Cebolinha depois de perder sua última bolinha (de gude)”.

Até mesmo portais se transformavam em molduras para os quadros. 


Mas o que realmente chama a atenção na história é o desenho de Emy Yamauchi Acosta. Nada dos desenhos chapados que acostumos a ver na turma da Mônica. A desenhista varia ângulos, planos, além de dar movimento e expressividade para os personagens.

A história não usa requadros convencionais. Ou eles simplesmente não existem, ou apresentam formatos inusitados, como nuvens ou corações. Em outros casos, o requadro é formado por uma moldura composta de lanços ou de um portal. Esse esmero na composição torna cada página uma verdadeira obra de arte.

O desenho variava planos e ângulos. 


Pelo que sei, saiu também uma edição em capa dura dessa história.

domingo, abril 21, 2024

Monteiro Lobato: Adeus

 

Em 1943 Emília encasquetou de conhecer a história da América “auto-contadamente”. Queria ouvir a história da boca do vulcão Aconcagua!
            Esse livro, que provavelmente se chamaria História da América para Crianças, nunca foi escrito por Lobato. Isso porque, além de pesquisar muito, o autor precisaria fazer uma viagem pela costa do Pacífico, beirando os Andes - um velho sonho. Não teve tempo. A partir de 1943 ele começou uma série de livros sobre os trabalhos de Hércules. E eram 12!
            Depois precisou fazer uma viagem à Argentina para tratar da edição de seus livros por lá. Foi recebido como uma celebridade e ficou um ano naquele país. Voltou ao Brasil apenas em 1947. Nessa época seus livros já eram traduzidos para as mais variadas línguas, todos com muito sucesso, em especial os infantis.
            Mas nem todo esse sucesso agradava tanto Lobato quanto as cartas que recebia de crianças.
            Uma vez uma menina, desesperada com o pedantismo dos programas oficiais, escreveu-lhe, pedindo para que Dona Benta explicasse a “regência dos verbos mais freqüentes”. Lobato, que não sabia nada do assunto, foi obrigado a recorrer a uma gramática e estudou até que pudesse explicar de forma compreensível o ponto.
            Certa vez um pai escreveu-lhe: “Com meus agradecimentos pela cartinha que o senhor mandou em resposta à do meu filho Lindenberg, dou-lhe notícia de que essa missiva está concorrendo enormemente para a cura do rapaz. Diz ele que ontem foi o dia mais feliz de sua vida”.
            Em outra carta, uma moça dizia que reprimida por todos da família, refugiava-se no Sítio do Pica Pau Amarelo, único lugar em que era realmente livre. “Cartas assim constituem os verdadeiros prêmios que possa ter um escritor no fim da vida”, admitia Lobato.
            E o escritor ia morrendo. “Sinto, às vezes, à noite, umas coisas que só posso definir como tentativas de fuga de um prisioneiro. Até agora todas as tentativas fracassaram, como têm fracassado todas as tentativas de fuga do Piantadino: mas de repente o consegue e os jornalistas no dia seguinte vêm com aquele trololó fúnebre: ‘Faleceu ontem, de síncope cardíaca o ilustre escritor Monteiro Lobato, um dos mais’, etc, etc, etc e lá vem toda a tropa de lugares comuns dos necrológios. Mas eu, o Ego que não morre porque não pode morrer, porque nada morre, nem o mais miserável átomo, estarei a rir da inópia dos jornalistas”.
            Lobato nessa época já acreditava na teoria espírita da sobrevivência da alma. Mas e se não fosse assim? E se, ao invés da continuação da vida, a morte trouxesse a extinção total do ser? “Nesse caso, vis-ótimo! Entro já de cara no Nirvana, nas delícias do não-ser! De modo que me agrada muito o que vem aí: ou a continuação da vida, mas sem os órgãos já velhos e perros, cada dia com pior funcionamento, ou NADA!”.
            No dia 28 de abril de 1948, 10 dias depois de seu aniversário, o escritor teve um espasmo vascular que deixou completamente cego. Pior dos martírios para um escritor: não podia ler uma única linha.
            Melhorou algum tempo depois, mas não tinha mais ânimo para viver. Seus dois filhos homens, Edgard e Guilherme, haviam morrido. Acrescentava-se a isso o fato de ter sido preso. A morte ia se aproximando e Lobato a aceitava como um alvará de soltura.
            “Adeus, Rangel! Nossa viagem a dois está chegando perto do fim. Continuaremos do além? Tenho planos logo que lá chegar, de contratar o Chico Xavier para psicógrafo particular, só meu - e a primeira comunicação vai ser dirigida justamente a você. Quero remover todas as tuas dúvidas”, escreveu ele ao amigo, poucos dias antes de morrer.
            Lobato faleceu no dia 04 de julho de 1948. Ao que se saiba, Chico Xavier nunca recebeu qualquer mensagem do escritor...
Em homenagem a ele, o dia 18 de abril passou a ser considerado o Dia do livro infantil

Tanguy e Laverdure

 


Em 1959, o desenhista Uderzo e os roteirista Goscinny e Charlier estavam desempregados, depois de tentarem criar um sindicato de quadrinista. A solução para continuar trabalhar foi criar sua própria revista, a Pilote. Para o número de estréia, Goscinny e Uderzo criam o que viria a ser o mais famoso quadrinho europeu de todos os tempos: Asterix. Mas com Charlier, Uderzo criou uma outra série igualmente memorável: os aviadores Tanguy e Laverdure.
A série surgiu devido ao amor de Uderzo por aviões (seu sonho de infância era ser mecânico de aviões) e para contrapor outras séries de sucesso na época, em especial Buck Danny, publicada na revista Spirou, e Dan Cooper, publicada na Tintin.
No primeiro álbum, Charlier aproveita-se muito bem da verve humorística de Uderzo e faz toda uma sequência de comédia de erros: Laverdure aproveita a chegada dos dois na escola de pilotos e faz um vôo rasante, levando ao chão um velhinho, que acaba se apresentando como coronel e, como punição, manda os dois para a oficina, fazendo com que os dois fiquem completamente sujos de graxa. Quando finalmente encontram o verdadeiro coronel, amobs acham que se trata de novo impostor.
O roteiro aproveita duas paixões de Uderzo: humor e aviões. 

Mas logo a série embarca em sua especialidade: batalhas aéreas e detalhes aeronáuticos. Charlier usa e abusa de termos técnicos: picada com passagem invertida, tornneaus, picada acentuada, vrilles, immelmann. Já Uderzo nitidamente se delicia desenhando detalhes dos aviões da época, os uniformes, os porta-aviões.
Charlier equilibra bem os momentos mais “didáticos” com os humorísticos, a ação e o suspense: logo os protagonistas são jogados no meio de uma trama internacional quando um foguete francês cai no deserto e se torna necessário resgatá-lo. Mas uma outra potência também está interessada no aparelho e começam as batalhas aéreas. Só dois mestres como Uderzo e Charlier para fazer com que sequências inteiras de aviões se enfrentando se tornem interessantes.

A misteriosa chama da Rainha Loana

 

A misteriosa chama da Rainha Loana é um livro de Umberto Eco de 2004, lançado aqui pela editora Record.
Na obra, um personagem passa por um trauma e conserva a memória semântica (a que é compartilhada por todos nós e trata dos universais. É a memória que permite a uma criança reconhecer um cachorro, seja ele um pit bull ou um terrier), mas perde a memória vivencial (aquela memória das coisas que vivemos e nos emocionaram).
Para tentar recobrar essa memória, ele recorre aos livros, revistas e gibis de sua infância e juventude. Metáfora óbvia, essas obras se tornam uma memória externa que permite ao personagem principal recordar a externa.
No fundo, a mensagem parece ser: somos o que lemos.
O livro é todo ilustrado com imagens desses livros e gibis e alguns momentos parece ser uma homenagem à literatura popular e aos quadrinhos. O título, por exemplo, é referência a uma obscura HQ italiana: “Era uma narrativa desarticulada que fazia água por todos os lados, os episódios eram repetitivos, as pessoas ardiam de amores repentinos, sem razão”. Ruim, mas mágico o bastante para marcar o autor.

O poço

 


O poço é um filme espanhol lançado pela Netflix dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia  que se destaca por misturar terror e critica social.
Na história, prisioneiros são colocados no que parece ser uma experiência científica (nunca sabemos ao certo) numa prisão com vários níveis. Todo dia uma plataforma desce com comida e os prisioneiros têm alguns minutos para comer. Não podem guardar nada ou a temperatura da cela aumenta muito, ou cai muito.
No primeiro nível, a plataforma é um verdadeiro banquete, o segundo nível come a sobra destes e o terceiro nível come as sobras do terceiro nível e assim sucessivamente. O resultado: quem está nos níveis mais altos come como um rei, e a qualidade da comida vai caindo conforme a plataforma desce. No final, não há mais comida, pois os níveis mais altos comeram mais do que deveriam.
O interessante é que os prisioneiros, sempre em dupla, são trocados a cada mês, de modo que quem antes se alimentava como rei no mês seguinte pode estar nos níveis mais baixos e não ter nada para comer por dias ou chegar ao ponto de ter que matar seu companheiro de cela para se alimentar.
O enredo, claro, é uma metáfora da sociedade, com seus vários níveis desde que eles começaram a existir. Uma metáfora brutal: em determinado ponto, as pessoas de um nível superior simplesmente cagam na pessoa abaixo. É também uma metáfora de como as pessoas mudam seu comportamento de acordo com o nível em que estão. Quem antes estava embaixo, quando sobe passa a ter o mesmo comportamento de que era vítima anteriormente.
Algumas pessoas tentam mudar isso, procurando convencer os outros a comerem somente o necessário e serem mais solidárias, sem sucesso.
O poço é, nitidamente, uma metáfora sobre a sociedade e sobre como as pessoas se comportam quando estão em níveis mais elevados. Mas é também uma centelha de esperança de que, em algum momento possa surgir, em meio ao caos, a solidariedade.
É um filme brutal, mas necessário.

Cabanagem: a revolta que se alastrou pela Amazônia

 

A cabanagem foi uma das revoltas mais interessantes da história do Brasil não só por ter chegado ao poder (e se mantido no poder por aproximadamente um ano), mas principalmente por sua amplitude: quando o movimento foi derrotado em Belém, a revolta, ao invés de ser sufocada, se espalhou por praticamente toda a  região Amazônica.
Os cabanos chegaram em Mazagão, no Amapá e até em Manaus, no Amazonas (onde tomaram o governo).
Contribuiu muito para isso o fato da região ser tomada por pequenos igarapés, que facilitavam muito o movimento dos cabanos. As canoas eram amarradas uma na outra, o que aumentava em muito a velocidade desses grupos chamados de magotes. E, quando passavam por grandes fazendas, libertavam os escravos, muitos dos quais se uniam ao magote.
Se por um lado a revolta se espalhava, a repressão também. O brigadeiro Andrea, enviado pelo governo regencial para acabar com a cabanagem e chamado de pacificador não tinha a menor preocupação com vidas. A ordem era matar. Assim, soldados atiravam em ribeirinhos suspeitos de terem dado acolhida aos cabanos.
Estima-se que um terço da população da Amazônia tenha perecido durante todo o período da cabanagem.


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Dogville

 


Dogville é um desses filmes que deixam uma marca em quem o assiste. É como uma mancha que não sai. Eu meço a qualidade de um filme pelo tempo que ele passa em minha memória. Um filme que é esquecido no dia seguinte é um péssimo filme. Dogville ainda será lembrado por muito tempo, não só pelos aspectos de narrativa e construção (ausência de cenário, narração em off, câmeras digitais), mas pela história.

É uma fábula pesada sobre como as pessoas vão, aos poucos, abusando de indivíduos fragilizados e como é sempre possível encontrar justificativas racionais para esses abusos, como a do caminhoneiro que estupra Grace argumentando que, com a presença da polícia na estrada, seu trabalho se tornou mais perigoso e ele se vê obrigado e pedir um pagamento a mais.

Fundo do baú - Buck Rogers no século 25

 


Buck Rogers, criação do escritor Philiph Nowlan, foi publicado originalmente na revista pulp Amazing Stories, em agosto de 1928. O conto, chamdo de Armagedon 2419 AD contava a história de Rogers, um piloto preso em uma mina que desabara. Em virtude de gases radioativos ele permanece em estado de animação suspensa, vindo a acordar 500 anos depois. Quando acorda, ele se vê em um país totalmente diferente, com o pais invadido por estrangeiros e seus habitantes obrigados a se esconderem em florestas.

A história fez tanto sucesso que logo foi adaptada para os quadrinhos, meio no qual se tornaria célebre no traço de Dick Calkins. 

Na versão em quadrinhos o nome foi mudado para Buck Rogers para aproveitar o sucesso de Buck Jones, famoso cowboy do cinema. A tira foi publicada pela primeira vez em 1929 e fez enorme sucesso, abrindo caminho para muitos outros personagens de aventura e ficção-científica, como Flash Gordon.

Em 1979 o produtor Glen A. Larson resolveu transformar o personagem numa série televisiva para aproveitar o sucesso dos filmes Guerras nas Estrelas. Larson já tinha lançado um ano antes Battlestar Galactica e percebeu que poderia aproveitar adereços e cenários nessa nova atração.

Para promover Buck Rogers, Larson pensou numa estratégia que já tinha sido usada em Battlestar Galactica: o piloto foi lançado diretamente nos cinemas. Foi um sucesso, arrecadando 21 milhões de dólares de bilheteria.

A série misturava aventura espacial com macacões apertados, efeitos especiais, lutas mal-coreografadas e um robô fofinho, Twiki, que dizia “biribiribiri” antes de cada frase.

A abertura do seriado mostrava o lançamento de um foguete espacial com a narração: “1987. Finalmente o lançamento da nave espacial americana ao espaço mais distante. Um erro de cálculos fez com que a nave pilotada pelo capitão William Buck Rogers fosse tirada de sua trajetória, ficando em uma órbita na qual ele permaneceu, congelado, voltando a acordar 500 anos depois.". A sequência continuava com o personagem desacordado girando num cenário caleidoscópico.

O ator que interpretava o personagem, Gil Gerard, fazia o tipo garanhão e estava sempre cercado de belas mulheres. Apesar de se sentir um homem fora de seu tempo, Rogers se dá muito bem em situações em que as pessoas do século 25 falham miseravelmente. Em um dos episódios, por exemplo, há uma conspiração para assassinar uma autoridade, e mesmo com todo o serviço secreto envolvido, o homem só não é morto graças à intervenção do protagonista.

Uma curiosidade é que o ator Buster Crabbe, que fizera o papel do personagem no seriado da Universal na década de 1940 participou de um dos episódios como Comissário Gordon, uma referência a outro personagem interpretado por Crabbe: Flash Gordon.

Void Indigo

 

Void Indigo surgiu como uma proposta do escritor Steve Gerber de renovar o Gavião Negro. Como a DC não topou a proposta, ele modificou o projeto e procurou editoras indepentes. Após várias recusas, ele procurou a Marvel, que estava lançando a série Épic, nas quais os direitos dos personagens ficavam para criadores. Surpreendentemente a Casa das Ideias aceitou publicar o material na série Graphic Marvel. A proposta era que essa edição especial fosse uma espécie de piloto para uma série em seis capítulos. Infelizmente, a reação da crítica à violência da história foi tão negativa que o editor Archie Goodwin desistiu de levar a série adiante. Essa reação negativa é muito estranha, pois na mesma época estavam sendo lançados trabalhos muito adultos, com violência explícita, a exemplo do Cavaleiro das Trevas.

Feiticeiros fazem sacrifício para manter seu poder, mas não conseguem... 


Curiosamente, a Abril resolveu publicar a história piloto no número 10 da sua série Graphic Novel. Confesso que na época deixando passar, principalmente por conta da capa, que não parecia muito chamativa e contava muito pouco sobre o tipo de história que poderia se encontrar no miolo. A contracapa, aliás, é mais interessante. Quando, anos depois, comprei e li, fiquei surpreso tanto com a qualidade do texto e da trama quando com o desenho de Val Mayerik, que consegue trazer elementos da espada e magia ao mesmo tempo misturando esses elementos com um traço sujo e muitas vezes deformado, que se encaixa perfeitamente na proposta.

A história se passa no período que separava a submersão de Atlântida e a fundação de Jericó. Feiticeiros sobreviventes de Atlântida conquistam um império, impondo um reinado de terror. Mas tribos bárbaras, comandadas por Athagaar avançam sobre o império. Isso ocorre exatamente quandos os feiticeiros estão velhos e com poderes enfraquecidos. A forma de tentar retomar o poder e a juventude é através de sacrifícios precedidos de torturas. A história deixa claro que quanto mais sofrem as vítimas, maior o poder do encantamento. Mas mesmo matando milhares de jovens, o sofrimento deles não é suficiente para renovar os bruxos. “Mesmo ante a face da morte, esses jovens perderam a razão de lutar. Sua apatia enfraquece a vontade de viver. E quando a vida deixa de ter valor, a tortura nada significa”, explica um deles.

... O que os leva a sequestrar e torturar o chefe dos bárbaros. 


A solução encontra é sequestrar o bárbaro Athagaarr e sua amante e submetê-los ao sacrifício.

Essa é a parte em que o texto de Gerber chega ao seu auge e, apesar da qualidade, provavelmente é a razão pela qual a série foi alvo de tantas críticas. Um exemplo: “Seu sofrimento dura dias. Incansavelmente, e com precisão cirúrgica, os lordes negros submetem seu corpo a uma initerrupta série de punições. Ele é queimado com ferro em brasa, açoitado com chicotes farpados, cortado, furado, espancado e retalhado. O estimulante frio do norte, a espada de seu pai, os triunfos da adolescência. Sua iniciação na arte de guerrear... ele se refugia em todas as lembranças, até que cada delas se mistura com as outras e com o presente... tornando-se, sem exceção, dolorosas. A vitória é dolorosa. A tortura é dolorosa. O abraço de Ren é doloroso”.

A cena da totura é visceral e provavelmente a razão pela qual a publicação recebeu críticas negativas.


Embora o desenho não seja explícito, ele funciona muito bem para demonstrar toda a angústia do personagem.

A trama da série começa depois da morte do protagonista. A narrativa pula séculos e o vemos no futuro, como um ser alienígena que cai na terra, descobre seus passado e começa uma jornada de vingança. O último quadro, inclusive, é um gancho para isso.

É uma pena que a série não tenha dado certo.   

sábado, abril 20, 2024

A cidade à beira da eternidade – a versão em quadrinhos

 

 A cidade à beira da eternidade é o mais premiado e aclamado episódio da série clássica de Jornada nas Estrelas. Entretanto, a versão que foi para as telas era muito diferente da versão original, do escritor Harlan Ellison. Ellison, aliás, ficou tão indignado com as alterações que repudiou o episódio e só aceitou que seu nome aparecesse nos créditos porque isso lhe abria caminho para escrever filmes e séries.

Em 2014 a editora IDW resolveu publicar uma versão em quadrinhos dessa história clássica com roteiro de David Tipton e Scott Tipton e arte de J.K. Woodward, mas adaptando à risca o roteiro de Ellison.
O resultado é muito interessante, especialmente para comparar as diferenças entre as duas versões.
Na versão de Ellison a trama gira em torno de tráfico de drogas na Enterprise. 


A primeira coisa que salta à vista é que na versão original a história começava com uma trama de tráfico de drogas. É o traficante que desce ao planeta e volta ao passado, modificando o passado e alterando completamente o futuro. Na versão de Gene Romdemberry, é McCoy, que afetado por uma dose excessiva de remédio, que volta no tempo.
A trama sobre drogas dificilmente seria aceita pela televisão da época. Além disso, ia contra a ideia de Gene Roddenberry de Jornada nas Estrelas como uma espécie de utopia tecnológica.

A sequência do planeta mostra outra alteração necessária: no roteiro de Ellison eles encontram de fato uma cidade, com vários seres que controlam o tempo. Como forma de cortar os custos, rondeberry cortou a cidade e deixou apenas um portal. Funcionou bem, embora o título tivesse perdido o sentido.
A trama na terra também fica mais sintética e mais fluída com a eliminação de alguns personagens e sequências. Colocar a jovem micssionária Edith Keeler como proprietária do local que dá comida aos necessitados funciona muito bem e dá sentido aos seus sermões, que na versão televisiva se interliga com a própria utopia de Jornada.
No roteiro original quem voltava ao passado era o traficante, e não McCoy. 


Por fim, trocar o traficante por McCoy tornou mais coerente o final, uma vez que esse também passa a ter uma relação com a missionária e, assim, tem uma razão concreta para salvá-la.
A conclusão é de que a versão de Ellison é muito boa. Só não é Jornada nas Estrelas.