terça-feira, julho 11, 2017

Ivanhoé

A batalha por um trono. Um personagem sem força física, mas inteligente, que consegue se destacar por sua sagacidade e frases de efeito. Parece "As crônicas de Gelo e Fogo", série de fantasia de George Martin, mas trata-se de Ivanhoé, romance histórico escrito pelo Walter Scott e publicado na Inglaterra em 1820. O livro de Scott é um daqueles clássicos que definem um gênero a ponto de influenciar desde obras mais profundas, como os livros de Martin, até os ingênuos filmes matinês. Está tudo ali, desde suas melhores qualidades aos mais irritantes clichês (como da mocinha que acaba sendo salva em cima da hora por um herói adoentado, mas valente).

A obra se passa na Inglaterra da Idade Média. Nesse período, a ilha tinha sido invadida pelos normandos (vindos do norte da Europa e falando a língua francesa), que exerciam sua opressão e desprezo pelos habitantes locais, os saxões. 

O personagem principal, Wilfred, é um jovem nobre saxão deserdado pelo pai após aceitar os costumes cavalheirescos franceses e acompanhar o rei Ricardo Coração de Leão à Terra Santa para participar da Cruzada. Seu pai, Cedric, é um saudosista da época em que a Inglaterra era governada pelos saxões e todos os seus pensamentos parecem voltados para o retorno do domínio de sua raça sobre a ilha. 

Ao ler a obra, é importante lembrar que ela foi escrita numa época em que o gênero romance (que seria o mais importante da literatura moderna) ainda estava se construindo. Isso provoca, de um lado, algum estranhamento pelo aparente pouco domínio de algumas técnicas narrativas e, por outro, acaba tornado muito previsível alguns acontecimentos para leitores mais atentos, que facilmente conseguem desvendar os segredos escondidos pelo autor, como o fato de que Wilfred é o cavaleiro que luta incógnito na justa ou que o arqueiro vestido de verde na verdade Robin Hood. O leitor desavisado irá estranhar principalmente as elocuções (a forma como o diálogo é introduzido na narrativa) e as descrições, muitas vezes deslocadas ou didáticas demais como se o romance se misturasse com um livro histórico. Exemplo: 

"O chão era composto de terra batida misturada com cal, que se transformava numa substância consistente, como a que é muitas vezes empregada em nossos celeiros modernos". 

Igualmente irritante são as digressões que muitas vezes paralisam a narração comprometendo o ritmo do livro ou frases desnecessárias, como: "No capítulo seguinte, vamos procurar descrever a cena que lhe surgiu diante dos olhos". 

Esses "defeitos", que mais se devem à época em que foram escritos acabam sendo suplantados pelas qualidades do livro. 

O personagem Wamba, por exemplo, um bobo da corte de Cedric, é um proto-Tyrion. Sua atuação na trama é fundamental em vários momentos e suas tiradas são praticamente equivalentes ao do anão Lannister (a ponto de se imaginar que o bobo tenha sido a principal influencia para a criação do famoso personagem de George Martin). Por exemplo, quando viaja sozinho com o rei Ricardo pela floresta e pressente que serão atacados por inimigos e que o rei não fará uso de uma trompa que poderá chamar amigos para auxiliar na luta, diz: "Quando a coragem e a loucura viajam juntas, a loucura deve encarregar-se da trompa, pois sabe tocá-la melhor". 

Outro aspecto interessante da trama é a forma como são retratados os judeus, especialmente se considerarmos que o livro foi publicado em 1820, época em que esse povo era vítima de grande preconceito. Há quem pense que a perseguição aos judeus foi invenção dos nazistas. Nada mais falso. O povo judaico era perseguido por razões religiosas desde a Idade Média e Ivanhoé tem o grande mérito de mostrar essa perseguição, retratando os judeus de maneira positiva:

"Não havia raça alguma na terra, no mar ou nas águas, que fosse objeto, por parte de todos, de tão interrupta e constante perseguição, como os judeus eram nessa mesma época. Sob os mais ligeiros e irrazóaveis pretextos, bem como ante as acusações mais absurdas e infundadas, as suas pessoas e propriedades eram expostas a todos os caprichos da fúria popular, pois os normandos, saxônicos, bretões e dinamarqueses, por mais adversas que essas raças fossem entre si, disputavam a primazia da ferocidade para com esse povo, que eles supunham, baseando-se em suas próprias religiões, dever odiar, insultar, desprezar, saquear e perseguir". 

E essa condição permaneceu por séculos, só sendo encerrada pela divulgação dos horrores dos campos de concentração nazistas. Só para termos de comparação, outro clássico romântico, Taras Bulba, do grande escritor russo Nicolai Gógol mostra com simpatia a perseguição que soldados cossacos realizavam contra os judeus, chegando até mesmo ao ponto de matá-los por pura diversão. Assim, é surpreendente que um livro escrito em 1820 mostre com tanta benesse esse povo, a ponto de colocar uma judia, Rebeca, como protagonista romântica, de caráter extremamente correto, capaz de abdicar de uma paixão por puro amor.
Num romance recheado de personagens famosos, como Ricardo Coração de Leão, o princípe usurpador João, Robin Hood e outros, são justamente os que seriam os secundários, como a judia e seu pai, um bobo e um guardador de porcos que acabam se destacando, demonstração mais do que inequívoca de que Walter Scott estava muito além de seu tempo. 

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