sábado, junho 17, 2017

1963: Alan Moore reinventa o passado

A minissérie 1963 surge num contexto muito específico. Em 1993, Alan Moore estava há anos sem escrever super-heróis e brigado com as duas principais editoras do gênero, a Marvel e a DC. Nesse período (mais especificamente em 1992), alguns dos desenhistas mais populares da Marvel abandonaram a editora para criar a Image Comics. Aproveitando a especulação dos fãs, que comprovam muitas vezes vários exemplares do mesmo número esperando que os gibis valorizassem, a Image teve vendas estrondosas, tornando-se a terceira editora norte-americana.
Nesse ano, Jim Valentino, um dos sócios da Image, convidou Steve Bissette (antigo colaborador de Moore no Monstro do Pântano) para desenhar um número de seu personagem ShadowHawk. Bissette fez o convite para que Moore escrevesse o roteiro.
Só então Alan Moore resolveu ler os gibis da Image e o que viu não o impressionou. Faltava roteiro e os personagens eram todos violentos e anatomicamente distorcidos. Moore percebeu que parte da culpa dos quadrinhos terem entrado nesse caminho, de heróis violentos, cínicos ou simplesmente depressivos era de Watchmen e decidiu que precisava fazer algo para devolver aos quadrinhos seu lado divertido. Além disso, havia a possibilidade de colaborar com uma editora que estava pisando nas duas principais companhias de quadrinhos.  
Embora não tenha aceitado o convite para escrever ShadowHawk, Moore propôs à editora uma missérie em seis capítulos chamada 1963, com personagens que mimetizavam os heróis da era de prata dos quadrinhos (deveria existir um sétimo capítulo especial, em que esses personagens clássicos se encontravam com os heróis da Image, mas esse final se tornou inviável quando os sócios da editora começaram a brigar entre si).
1963 era um pastiche das histórias da Marvel do início da década de 1963, em especial as escritas por Stan Lee e desenhadas por Jack Kirby e Steve Ditko. O nome, aliás, era uma referência ao ano de maior criatividade dessa editora, em que vários heróis foram criados.
Cada número da minissérie era referência a uma ou mais publicação da Marvel. Assim, Mystery Incorporated era o Quarteto Fantástico. Fury era uma mistura de Homem-aranha e Demolidor. Tales to Atomish foi homenageada em Tale from Beyond (com histórias de N-man, uma espécie de Hulk) e Johnny Beyond (referência direta ao Dr. Estranho). Tales of Suspense deu origem a Tales of Uncanny, com USA (Ultimate Special Agent), um pastiche do Capitão América e Hypernaut, uma espécie mais elaborada de Homem-de ferro. Horus – lord of Light é Thor, o deus do trovão. Finalmente, Tomorrow Syndicate é a versão 1963 dos Vingadores, unindo a maioria dos personagens anteriores em um só gibi.
Moore 1963 imitou meticulosamente as publicações da Marvel da década de 1963. No ano que foi publicado, 1993, as revistas da Image e depois da Marvel e da DC se destacavam pelas capas em alta gramatura, coloração por computador e impressão de altíssima qualidade. Moore resgatou o papel jornal, as capas em baixa gramatura e, principalmente, a coloração reticulada, típica da década de 1960. Além disso os títulos, desenhados a mão, mimetizam a tipografia extravagante dos gibis da época.
Os créditos imitam o marketing pessoal usado por Stan Lee nas revistas da Marvel. Assim, por exemplo, na revista Mystery Incorporated, trazia o seguinte crédito: “Sensacional roteiro pelo afável Al Moore”.
Para tornar autêntico até mesmo o processo criativo, Alan Moore abandou o roteiro “full script à prova de desenhista”, em que cada quadro é minunciosamente descrito, em favor do Marvel Way, providenciando apenas um plot entregue aos desenhistas, sendo colocados textos e diálogos posteriormente, como era feito por Stan Lee.
Outro fator relevante de verossimilhança (e. ao mesmo tempo, ironia) eram as propagandas, que mimetizam não só o estilo dos anúncios da Marvel da época como também o clima da guerra fria. A revista Tales of Uncanny traz o anúncio de um pôster de monstro que tem as feições de Stalin (o texto diz que também existe a versão Lenin). Um anúncio publicado na revista The Fury tenta vender um submarino nuclear por apenas 6,98 dólares.
Esses anúncios falsos são misturados com anúncios reais, de camisetas com reproduções das capas e de lojas de quadrinhos. Um deles, da loja Moondog´s, diz: “O poderoso místico Moondog prediz:   No futuro haverá lojas que venderão apenas gibis!”.
Alan Moore não poderia esquecer da sessão de cartas. Na maioria das vezes, o próprio autor escrevia as cartas e as respostas, mas algumas pessoas resolveram “entrar na brincadeira”, incluindo o roteirista Neil Gaiman, que se faz passar por um garoto fã dos personagens que se oferece para revisar os roteiros sempre que eles passarem na Inglaterra e aponta erros, como uma história de Johnny Beyond que mostra a Rainha da Inglaterra morando no Big Bem e policiais britânicos usando armas de fogo.
A imitação era tão perfeita que um leitor desavisado poderia imaginar que estava, de fato, diante de um gibi da década de 1960.

Por conta da briga entre os sócios da Image, a mini acabou não sendo finalizada e, provavelmente por isso, nunca foi publicada no Brasil. É, no entanto, um dos trabalhos mais geniais de Alan Moore. 

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