sexta-feira, junho 06, 2014

A cultura visual e a liberdade do receptor



Durante décadas, todos os estudos sobre os produtos culturais sempre foram centrados nos produtores, fosse no poder destes (teoria hipodérmica) ou no que se pretendia com a mensagem. Até mesmo a semiótica é voltada para analisar o que o produtor queria dizer com tal produto – ou um especialista dava uma leitura autorizada deste mesmo produto. 
Uma novidade da área de Cultura Visual é que ela se interessa menos pelos produtores e muito mais pelo que as pessoas fazem com esses produtos, sendo o significado livre para diversas interpretações. Nesse sentido, achei esse posicionamento muito próximo ao que eu sempre entendi a respeito do assunto, desde que era criança. Fã de seriados e desenhos animados, eu nunca via na tela o que estava passando, estava sempre completando o roteiro na minha cabeça, preenchendo as brechas, enxergando dilemas éticos onde eles não era visíveis, profundidade onde ela era apenas insinuada. Alguns dos episódios que mais me marcaram eu só vi uma cena, ou uma sequência e completei o resto na minha cabeça.
Alguns exemplos: 

No seriado Terra de gigantes, eu sempre imaginei que talvez os protagonistas não tivessem sido transportados para um planeta de gigantes, mas antes tivessem sido reduzidas durante a tempestade elétrica e estavam na verdade na Terra. Assistindo o seriado já adulto, descobri que essa perspectiva não existia na série. O roteiro deixava bem claro que eles haviam sido transportados para outra realidade. Até hoje acho minha leitura infantil mais interessante, inclusive do ponto de vista filosófico. 

No seriado Fuga do século 23, eu sempre visualizei um dilema: os heróis estão fugindo de uma cidade governada por um computador, mas têm como colega de jornada um androide. Reassistindo o seriado, descobri que os roteiristas nunca exploraram essa ironia. 

No seriado Viagem ao fundo do mar, o episódio que mais me marcou foi um em que vi apenas uma cena, em que eles chegam em Washington e a cidade está devastada. Por alguma razão, nunca consegui assisti o restante, mas completei o roteiro em minha mente.

Eu, desde muito criança, sempre fui muito anti-americano. Não me pergunte porque, eu simplesmente não simpatizava com seu imperaliasmo. No entanto, ironicamente, meu super-herói predileto sempre foi o Capitão América. No entanto, quando criança, eu nunca associei o herói com o país, apesar do nome e do uniforme baseado na bandeira norte-americana. Na verdade quando, já adolescente, alguém me disse que o Capitão representava os EUA, para mim foi uma surpresa. Para mim ele sempre foi um símbolo de superação (ela um garoto frágil, incapaz de lutar na guerra, que se habilita a uma experiência científica e se torna um super-soldado) e da luta contra o autoritarismo. Anos depois conheci a tese de Gerard Jones, publicada no livro Homens do Amanhã, de que o Capitão na verdade é um mito judaico, do frágil judeu, perseguido pelo nazismo, que se torna forte e dá a volta por cima. O filme recente veio ao encontro da minha visão infantil: nele, o Capitão se volta contra seu próprio país ao perceber que o discurso de segurança nacional está levando a um novo tipo de fascismo. 
Assim, cada um de nós vamos completando, resignificando, nos apropriando dos produtos culturais que chegam até nós. Quando alguém manda algo para o mundo, seja um quadro, um filme, um seriado, uma história em quadrinhos, ela deixa de pertencer a ele e passa a pertencer a quem recebe esse conteúdo.

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