sexta-feira, agosto 25, 2006

Entrevista no Justiça Eterna

Fui o entrevistado da edição 20 do fanzine Justiça Eterna, de Sérgio Chaves. (quem quiser adquirir o zine, escreva para justicaeterna@hotmail.com).

Na introdução da entrevista, Sérgio diz que sou uma referência quando falamos em roteiros de quadrinhos.

Reproduzo abaixo parte da entrevista (que é bem grandinha):


Na sua opinião, qual a importância das HQs na formação cultural de uma pessoa?
Durante muito tempo se achou que os quadrinhos provocavam preguiça mental, que quem lia quadrinhos não ia ler livros, não ia ser ninguém na vida. A história mostrou justamente o oposto. Os quadrinhos aproximam a pessoa da leitura e geralmente quem é um grande leitor de quadrinhos o é também de livros. Ouço muitos pais reclamarem que seus filhos não gostam de ler, mas que não compram quadrinhos para suas crianças. Tenho dois filhos, uma menina de 6 anos e um rapaz de 10. Os dois lêem quase que desesperadamente. A Moira só sabe comer se estiver lendo quadrinhos (ela adora “Turma da Mônica”). O Alexandre já está numa fase de se interessar por filosofia... com 10 anos! E tenho certeza de que foi a leitura de quadrinhos que mostrou a ele o quanto ler é divertido.

Na faculdade onde leciona, você costuma utilizar HQs em alguma situação?
De vez em quando. É complicado, porque não existe material sobre os assuntos que trabalho na forma de quadrinhos. O que lembro de ter usado foi uma HQ sobre o Newton.

Como surgiu sua paixão pelas HQs?
Leio HQ desde muito pequeno. Gostava das histórias do “Tio Patinhas” do Carl Barks e dos autores italianos, embora não soubesse quem fazia, mas percebia a diferença. Gostava também, muito, do Maurício de Souza. Aquela história do Nicolosi, em que Cebolinha e Mônica fazem “Romeu e Julieta” era um verdadeiro tesouro para mim... Um dia estava numa fila de banco e alguém me emprestou uma revista de super-heróis; era uma “Superaventuras Marvel”. Gamei. Tinha uma história do Demolidor, outra do Conan e outra do Dr. Estranho. Por incrível que pareça, a que mais me marcou foi a do Dr. Estranho. Tanto que, tempos depois, fiz um fanfic com o personagem... Aí comecei a ler de tudo. Dei sorte de começar a me interessar por quadrinhos numa ótima época, de Frank Miller no Demolidor, Claremont e Byrne nos X-men...

E você já sofreu algum tipo de preconceito com os quadrinhos?
Muitos. Em casa, eu era praticamente proibido de ler quadrinhos. Embora houvesse um estímulo quando eu era criança, conforme fui ficando adolescente, a pressão começou a aumentar... Mas não foi só na família. Recentemente, entrei numa lista de discussão sobre roteiros de telenovelas. Como vi que, além da discussão estrita sobre telenovelas; falava-se também sobre literatura, teatro, cinema, resolvi fazer um comentário, comentando as diferenças entre o roteiro de quadrinhos e o de novela. Quase fui expulso da lista! Dezenas de pessoas mandaram e-mails irados ao moderador alegando que eu estava fugindo do tema. Na opinião deles, quadrinhos não tem nada a ver com novela (e não conseguem ver que o vingador mascarado da novela “Sinhá Moça” é um herói de quadrinhos...).

Como você reage diante de opiniões ignorantes como essas?
Tento debater, mas a grande maioria prefere me ignorar (risos).

Quando começou a produzir seus próprios roteiros?
Eu fazia alguma coisa já na época da oitava série, ensino médio, tinha até uma imitação do Conan chamada Naum (e isso virou piada na escola: Quer ler a nova história de meu personagem? Nauummm!) e o Esquilo, que conseguia ser mais ridículo que o Naum, mas pelo menos voava... (risos) É, tem uma espécie de esquilo que voa, ou plana, mas o curioso é que a história se passava no Pantanal... Tempos depois, entrei na faculdade e conheci o Bené Nascimento, que estudava na sala ao lado da minha. Um dia ele chegou comigo e me mostrou umas páginas que tinha desenhado, mas não estava a fim de colocar texto. Perguntou se eu queria colocar texto. Eu, claro, aceitei. E foi minha primeira história, Floresta Negra, publicada na revista “Calafrio”. Costumo dizer que eu o Bené somos o ‘Stan Lee’ e o ‘Jack Kirby’ brasileiros. Inclusive, nosso método era parecido: discutíamos a história, ele ia para casa, fazia os desenhos e eu colocava o texto, o que era um grande exercício de percepção e imaginação. Acho que todo roteirista deveria fazer isso pelo menos uma vez. Só uma vez fizemos diferente. A história chamava-se “Decadence”, e era uma crítica ao terror clássico e uma apologia a Alan Moore, Neil Gaiman. Nessa história eu não só fiz o roteiro, como ainda fiz um rafe que o Bené seguiu à risca. Essa história, ironicamente, foi publicada numa revista chamada “Mephisto, terror negro”...

Como estava a situação na época?
Eu já peguei uma época não tão boa, mas que tinha reflexos dos ótimos momentos que foram a Grafipar e a Press. O Bené dizia que na época da Press ganhava dinheiro mesmo com quadrinhos e todo mundo ficava bobo, e havia uma certa esperança de que essa época voltasse. Além disso, havia uma euforia geral com a linguagem de quadrinhos. Caras como Frank Miller, Alan Moore, Neil Gaiman e Grant Morrison tinham mostrado até onde podia chegar a linguagem dos quadrinhos e estávamos doidos para explorar todo esse território bravio. Talvez seja uma época que nunca mais volte. Depois disso, a coisa só piorou. Veio o Collor e quebrou todas as editoras nacionais.

Porque o pseudônimo Gian Danton?
É uma longa e divertida história. Quando começamos a fazer HQ, eu e o Bené Nascimento fazíamos histórias criticando os militares (tínhamos um personagem chamado Coronel Ordem, que nunca foi publicado, talvez por medo dos editores) e ficávamos imaginando o que faríamos se a ditadura voltasse. O Bené era beleza, porque o nome dele não é Bené, é José Benedito, então até acharem ele, ele já estava em alguma embaixada... então, precisávamos de um pseudônimo para mim. Escolhi Jean Danton em homenagem ao líder da revolução francesa, mas depois achei que Jean não ficava legal e troquei por Gian, em homenagem ao Gian Lorenzo Bernini, um dos maiores nomes do movimento barroco, um grande teatrólogo, arquiteto, escultor, o Leonardo Da Vinci do Barroco. Com o tempo, o pseudônimo ficou tão ligado a mim que não consegui mais me livrar dele...

Mas, pessoalmente você também é conhecido por Gian, ou só em trabalhos quadrinhísticos mesmo?
É uma situação curiosa: em Macapá todo mundo me conhece como Ivan Carlo. Fora de Macapá, todo mundo me conhece como Gian Danton. Até a minha afilhada (filha do Joe Bennett) me chama de Gian Danton. Melhor assim. Se a ditadura voltar, vão ter que resolver esse quebra-cabeça antes de me acharem...

Aliás, continua sempre em contato com o Bené?
Sim. Sempre. Nas últimas férias fui para Belém e fiquei na casa dele. Foi bom para relembrarmos os velhos tempos. Aproveitei para escrever o texto de um projeto que pretendemos levar em frente, a “Família Titã”. Ficamos até de madrugada, produzindo. Dava para perceber a velha criatividade da dupla fluindo. O Bené é um dos melhores caras que já trabalhei. Os outros são o Jean Okada, o José Aguiar e o Antonio Eder. A seu modo, cada um é genial e com cada um eu tenho um método diferente de trabalho. Mas o resultado é sempre muito compensador quando se trabalha com um grande artista.


E como vê, hoje, a produção de roteiros no Brasil?
Vai ser cada vez mais difícil aparecerem bons roteiristas. Para começar, ele precisa conhecer um bom desenhista. Aí ele tem que lidar com os furos dos desenhista. Para ter uma idéia, tenho quase mil páginas de roteiros inéditos, que nunca foram desenhados porque o desenhista pulou fora no meio do projeto. Pior é quando o cara chega e diz: “faz um roteiro para meu o personagem”. Se o desenhista desistir, aquele material está perdido para sempre, pois você não pode apresentar para outro roteirista. Depois ele tem que lidar com os furos da editora. Tenho pelo menos 20 histórias desenhadas e inéditas. Muitas foram feitas a pedido de editoras, que depois decidiram que não queriam mais esse material...

Mas não tem planos para retomar esses trabalhos pendentes?
No caso dos trabalhos que foram criados a partir de parcerias com certos desenhistas, isso fica difícil. Em alguns casos os desenhistas até me deram autorização para tocar em frente, mas a verdade é que quando a gente escreve o roteiro para determinada pessoa, já faz no estilo dela. O Alan Moore faz uma comparação curiosa com os espetáculos de dança com cavalos. Quem vê, acha que o cavalo está acompanhando a música, mas na verdade, é o músico que está acompanhando os movimentos do cavalo. Por exemplo, eu tinha um personagem cômico chamado Capitão Albatroz, cujas tiras eram desenhadas por um fanzineiro chamado Rovel. Ficava muito bom, mas o Rovel resolveu deixar de fazer quadrinhos e tentei colocar essas histórias para outros desenhistas e não deu certo. Além disso, existem muitos roteiros que nem eu tenho mais cópia, especialmente da época em que eu fazia roteiros em máquina de escrever (e, de burro, entregava o original para o desenhista). Perdi pelo menos umas 30 histórias assim...

Nos últimos meses, surgiu a possibilidade de vigorar uma lei de incentivo aos quadrinhos nacionais. Você apóia ou discorda dessa lei?
Acho ótimo. Estou torcendo para que essa lei seja aprovada. Dou só um exemplo: o DOC TV, um concurso oficial que patrocina a produção de documentários fez ressurgir o documentário no Brasil. Leis desse tipo podem sim, ajudar.

Quando você produz uma HQ, sua preocupação é criar algo reflexivo ou apenas um bom entretenimento?
Minha preocupação é criar bom entretenimento. A mensagem vem junto. Claro, cada HQ é sobre um assunto, e você pode falar de filosofia a física quântica numa HQ, mas a diversão deve vir em primeiro plano. Aliás, um desenhista com que estou fazendo um projeto recentemente diz que o legal é que eu não fico tentando fazer uma obra-prima a cada quadrinho, mas só contar uma boa história. Não acho que Alan Moore estava pensando em criar uma obra-prima quando fez “Monstro do Pântano”. Ele só queria contar uma boa história, que tivesse alguma ressonância em seus leitores.

Atualmente, você tem lido o quê de quadrinhos? É muito seletivo?
Sai pouca coisa de quadrinho nacional, então leio pouca HQB, até porque moro em Macapá e aqui é mais difícil ainda conseguir material. Recentemente dois trabalhos do pessoal de Belém me chamaram atenção, “Belém Imaginária” e “Encantarias”. São trabalhos ótimos, que mostram que ainda existe gente produzindo material de qualidade. Quanto à HQ mais comercial, confesso que estou sem saco. No começo me empolguei com a Panini e comecei a comprar Demolidor, Marvel Max, Hulk. Mas aí comecei a perceber que esses trabalhos mais recentes são muito mais enrolação do que realmente qualidade. Veja o Brian Bendis. Os diálogos dele são excelentes, mas ele leva 10 edições para contar uma história que o Alan Moore contaria em duas... Atualmente só compro Marvel Max (por causa de poder supremo) e a coleção do Lobo Solitário. Aliás, eu me voltei para quadrinhos mais clássicos, década de 80 e até antes. Recentemente comprei em um sebo um encadernado da revista Gibi da década de 70 com material clássico de tiras de quadrinhos... um achado. E é material para ler por meses. Em termos de tempo e dinheiro, é preferível ler um gibi do que ler meses de Demolidor sem chegar a lugar nenhum. E estou relendo coisas da década de 80. Nunca me canso de ler os clássicos de Alan Moore. E até aquele material mais comercial também era bom, como o Esquadrão Atari. Também estou aproveitando essa coleção da Abril para voltar a reler as história do Carl Barks no Tio Patinhas...

Fale-nos sobre sua série “Mundo Dragão”, e sua experiência com desenhistas diversos, a forma de publicação, etc...
“Mundo Dragão” surgiu da percepção de que havia uma demanda muito grande para histórias infantis na rede... e poucas opções. Eu havia lançado pela Virtual Books dois livros infantis que eu havia escrito em homenagem aos meus dois filhos, Alexandre e Moira e foram sucessos absolutos. O Alexandre foi lido por 50 mil pessoas. Como história infantil tem que ter ilustração, tive a idéia de convidar alguns dos mais importantes quadrinistas brasileiros. O primeiro deles foi o Falex, que inclusive criou a estética dos personagens. Depois deles vieram muitos outros ilustradores, cada um melhor que o outro. As histórias são publicadas na Virtual Books (http://virtualbooks.terra.com.br/) e já está no capítulo 12. Ainda não recebi as estatísticas mais recentes, mas as anteriores mostravam um número de 500 mil leitores. Alguns deles são fãs, crianças ou pais que lêem para os filhos e escrevem perguntando quando vai sair mais um capítulo.

Recentemente, você teve duas obras lançadas pela editora Marca De Fantasia, “CIÊNCIA E QUADRINHOS” e “WATCHMEN E A TEORIA DO CAOS”. Fale-nos a respeito de ambos.
Ambos são capítulos da minha dissertação de mestrado, então um livro é complementar ao outro, mas podem ser lidos em separado. Em essência, os dois mostram como os quadrinhos sempre foram ótimos divulgadores de paradigmas científicos. A popularidade da noção do universo composto por átomos deve-se a uma HQ de Brick Bradford (Viagem ao interior de uma moeda). No segundo livro, aprofundo um assunto que trato também no primeiro: a forma como os quadrinhos de autores britânicos divulgaram a teoria do caos e a teoria do pensamento complexo, de Edgar Morin. Grant Morrison (em Homem-animal), Neil Gaiman (em Sandman e Livros da Magia) e principalmente Alan Moore (em Big Numbers e Watchmen) foram os autores que mais se engajaram em divulgar essa nova visão de mundo. Uma curiosidade: Eu fui a primeira pessoa, no Brasil, a dizer que Watchmen era baseado na teoria do caos. Isso no distante ano de 1993, no meu TCC de graduação.

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